quinta-feira, 24 de julho de 2014

O Conferencista Atribulado - Irmão X (Humberto de Campos)

Naquela manhã ensolarada de domingo, Gustavo Torres, em seu gabinete de estudo, alinhava preciosos conceitos sobre a arte de ajudar.
Espiritualista consciencioso, acreditava que a luta na Terra era abençoada escola de formação do caráter e, por isso, atendendo às exigências do próprio ideal, enfileirava, tranqüilo, frases primorosas para o comentário evangélico que pretendia movimentar na noite seguinte.
Depois de renovadora prece, começou a escrever, sentidamente:
– O próximo, de qualquer procedência, é nosso irmão, credor de nosso melhor carinho.
– O caluniador é um teste de paciência.
– Quando somos vitimados pela ofensa, estamos recebendo de Jesus o bendito ensejo de auxiliar.
– Desesperação é chuva de veneno invisível.
– A desculpa constante é garantia de paz.
– Não olvides que a irritação, em qualquer parte, é fermento da discórdia.
– Suporta a dificuldade com valor, porque a provação é recurso demonstrativo de nossa fé.
– Se um irmão transviado te prejudica o interesse, recebe nele a tua valiosa oportunidade de perdoar.
– Se alguém aparece, como instrumento de aflição em tua casa, não fujas ao exercício da tolerância.
– A calma tonifica o espírito...
Nesse momento, a velha criada veio trazer o chocolate, sobre o qual, sem que ela percebesse, pousara pequena mosca, encontrando a morte.  Torres anotou o corpo estranho e, repentinamente indignado, bradou para a servidora:
– Como se atreve a semelhante desconsideração?
Acredita que eu deva engolir um mosquito deste tamanho?
 Impressionada com o golpe que o patrão vibrara na bandeja, a pobre mulher implorou:
– Desculpe-me, senhor! A enfermidade ensombra-me os olhos...
– Se é assim – falou áspero –, fique sabendo que não preciso de empregados inúteis...  
O conferencista da arte de ajudar ainda não dera o incidente por terminado, quando o recinto foi invadido pelo estrondo de um desmoronamento.
O condutor de um caminhão, num lance infeliz, arrojara a máquina sobre um dos muros da sua residência.
O dono da casa desceu para a via pública, como se fora atingido por um raio.
Abeirou-se do motorista mal trajado,e gritou, colérico:  
– Criminoso! Que fizeste?  
– Senhor – rogou o mísero –, perdoe-me o desastre. Pagarei as despesas da reconstrução.
Tenho a cabeça tonta com a moléstia de meu filhinho, que agonia, há muitos dias...
– Desgraçado! O problema é seu, mas o meu caso será entregue à polícia.
 E quando Torres, possesso, usa o telefone, discando para o delegado de plantão, meninos curiosos invadiam-lhe o jardim bem tratado, esmagando a plantação de cravos que lhe exigira imenso trabalho na véspera.
Exasperado, avançou para as crianças, ameaçando:
– Vagabundos! Larápios! Rua, rua!... Fora daqui!... Fora daqui!...
Dai a instantes, policiais atenciosos cercavam-lhe o domicílio e Torres regressou ao gabinete, qual se estivesse acordando de um pesadelo...
Da mesa, destacava-se minúsculo cartaz, em que releu o formoso dístico aí grafado por ele mesmo: – “Quando Jesus domina o coração, a vida está em paz.”  
Atribulado, sentou-se.
Deteve-se novamente, na frase preciosa que escrevera, reconheceu quão fácil é ensinar com as palavras e quão difícil é instruir com os exemplos e, envergonhado, passou a refletir...
Livro: Contos e Apólogos.
Irmão X (Humberto de Campos)
Chico Xavier.

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