sábado, 21 de dezembro de 2013

Bem-Aventurados os que têm Fome e Sede da Justiça – Huberto Rohden

Esta bem-aventurança visa, sobretudo, os insatisfeitos, os descontentes consigo mesmos, os que sofrem o tormento do Infinito, a nostalgia d o Eterno, os que vivem ou agonizam em uma estranha inquietude metafísica, os que crêem mais no muito que ignoram do que no pouco que sabem.
Esta bem-aventurança sobre a bendita “fome e sede” não será compreendida por aqueles que estão quites e em dia consigo e com Deus, os que nunca experimentaram o que quer dizer estar “sofrido de Deus”.
Por mais estranho e paradoxal que pareça, o fato é que os que mais possuem a Deus mais o procuram, e tanto mais dolorosamente o sofrem quanto mais deliciosamente o gozam.
Na vida presente, o homem espiritual é vítima da sua espiritualidade e mártir da sua própria mística. É que toda a conquista no terreno espiritual sofre a sua própria insuficiência, uma vez que a distância que medeia entre qualquer finito e o infinito é sempre igual a infinito, e os que já percorreram boa parte do caminho e adquiriram grande clarividência das coisas de Deus percebem mais apuradamente esta verdade do que outros.
Mas este sofrimento é uma doce amargura, uma “bem -aventurada fome e sede”.
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Antes de tudo convém esclarecer o que aqui se entende pela palavra “justiça”. Esta palavra, toda vez que ocorre nas sagradas Escrituras, significa a relação ou atitude justa e reta que o homem assume em face de Deus. Não se refere à justiça no sentido jurídico, do plano horizontal, como é usada na vida social de cada dia. Justiça é, pois, a compreensão intuitiva de Deus (a mística) e o seu natural transbordamento na vida cotidiana (a ética).
Jesus proclama felizes os que têm fome e sede dessa experiência íntima, os que estão insatisfeitos com o pouco ou muito que alcançaram no caminho árduo da sua cristificação.
Sabem que estrada imensa lhes resta ainda a percorrer; mas sabem que é glorioso continuarem a andar rumo a seu grande destino. São como aves migratórias que, à aproximação do outono, percebem em si o tropismo de regiões distantes, nunca vistas, onde a luz e o calor, já em declínio na zona do seu habitat, se acham em plena ascensão. Daí o misterioso magnetismo que as atrai para regiões longínquas.
Para que o homem sinta em si essa espécie de nostalgia metafísica, deve ele, ter ultrapassado certas fronteiras de vivência comum; deve sentir certo cansaço — ia quase dizendo pessimismo — da vida terrestre, deve sentir, com maior ou menor intensidade e nitidez, o anseio de algo que nunca viu, mas de cuja existência tem intuitiva certeza.
O homem que ainda vive totalmente engolfado nos afazeres da lufa -lufa comum dos profanos, caçadores de matéria morte e carne viva , esse não está maduro para ter fome e sede de um mundo invisível. Antes de sentir essa fome, terá de experimentar o fastio daquilo de que agora tem fome. “Quem bebe desta água (das coisas materiais) torna a ter sede (das mesmas); mas quem beber da água que eu lhe darei, esse nunca mais terá sede (da s coisas materiais)” porque esta água se lhe tornará em uma fonte que jorra para a vida eterna.
Sendo que as coisas materiais não apagam o desejo; pelo contrário, quanto mais gozadas tanto mais acendem o desejo, porque a posse aumenta o desejo, e o desejo exige novas posses — os profanos têm de intensificar cada vez mais os estímulos para sentirem ainda novos gozos; e, não raro, procuram narcotizar-se com os pequenos finitos de cada dia para não sofrerem a insatisfação de que estas coisas não podem dar definitiva satisfação.
Em vez de ultrapassarem a barreira das quantidades e entrarem na zona da qualidade, tentam aumentar as quantidades - assim como quem bebe água salgada para apagar a sede, acendendo-a cada vez mais.
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O divino Mestre proclama felizes os que sofrem essa fome e sede da experiência de Deus, porque eles serão “saciados”.
É certo que, um dia, em outros mundos, essa nostalgia será satisfeita, porque a natureza não engana seus filhos, impelindo-os a um alvo fictício. Se existem terras tropicais adivinhadas pelas aves migratórias das zonas frias, não pode deixar de existir aquele mundo que os anseios metafísicos dos melhores dentre os filhos dos homens sentem nas profundezas da alma.
Ainda que o finito em demanda do Infinito tenha sempre diante de si itinerário ilimitado, e jamais chegará a um ponto onde lhe seja vedado progredir ulteriormente — porque não há “luz vermelha” nos caminhos de Deus — é certo que o humano viajor chegará a um ponto em que a sua compreensão e amor de Deus o tornará profundamente feliz.
Livro: O Sermão da Montanha.
Huberto Rohden

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